Trilha de Lágrimas - Capítulo 4

Capítulo 4

— Venha e seja o nosso Salvador — uma voz suplicou baixinho em meu ouvido.

Novamente aquela voz, novamente aquela súplica.

Abri os olhos e encarei o caleidoscópio familiar. Eu estava novamente ali, naquela dimensão de poder, possivelmente dentro do Reino Espiritual de Spes. Guias e Sentinelas possuíam um local onde ficava a sua energia espiritual, e era também a morada dos animais espirituais. Esses locais podiam assumir várias formas, desde uma pequena sala a uma cidade inteira. Como Spes ainda não tinha começado o seu treinamento, o seu Reino Espiritual era completamente bagunçado e eu me encontrava no meio dele.

Mas como? O corpo de Spes tinha sido dilacerado pelo veneno, eu senti a vida se esvair completamente do que tinha sobrado dele. Como ele podia estar vivo? Como eu podia estar vivo no Reino Espiritual dele? Quem era aquela voz que me chamava para salvá-la?

A entidade que me conjurou deveria ser muito poderosa. Poderosa o suficiente para evitar a minha morte. Então como eu poderia salvá-la? Senti um gosto amargo na boca com aquela piada de mau gosto. Eu não conseguia nem manter meu nome fora do Serasa, como poderia proteger alguém? Como poderia proteger um ser tão poderoso?

— O que você quer de mim?! — gritei a plenos pulmões, mas o som não saiu em meio ao vácuo.

— Eu ouvi a sua prece, Salvador — a voz parecia soar no meu ouvido, mas na realidade estava apenas na minha mente — Você tem a força de vontade que me falta, por isso preciso que você me ajude.

— Como? — perguntei mentalmente.

— Se torne poderoso e salve Pristine.

— Como assim, salvar Pristine? — tentei perguntar novamente, mas antes que pudesse pensar na sentença, já estava de volta à Mansão Sagrada.

A canção sinistra do coral reverberava, a flâmula da vela em minhas mãos queimava suavemente e Ignis continuava em pé ao meu lado. Eu tinha retornado ao início da novel.

— Que a Luz ilumine o seu caminho, Guia Spes — repetiu novamente a Prioresa.

Dessa vez fui incapaz de forçar um sorriso. Eu sabia que aquela velha bruxa iria fugir sem se importar com as vidas ceifadas pelo portal. Provavelmente a catedral seria reconstruída rapidamente com energia dos Sentinelas, e a tragédia seria abafada para não causar comoção entre os civis.

Ignorei a cerimônia e foquei no que precisaria fazer. Eu fui convocado por alguma entidade poderosa para salvar Pristine. Então, meu primeiro passo seria lançar um escudo protetor ao redor do portal para que todos evacuassem, e assim ninguém se machucaria.

O arrepio na minha espinha era o sinal para agir, vi o brilho surgir novamente e antes que ele crescesse o envolvi com um escudo mental e gritei:

— É um portal nível S! Corram!

— O que você está fazendo? — perguntou Ignis segurando o meu braço — Onde você aprendeu a fazer isso?

— Não importa, apenas corra antes que o portal se quebre, se você ainda estiver aqui quando isso acontecer…

— Não me mande ir embora! Você é o meu Guia! Nunca, jamais, em nenhuma circunstância eu sairei do seu lado! Você me entendeu?

Ignis tinha razão. Ele não saiu do lado de Spes nem após sua morte, e era exatamente por isso que eu não podia deixá-lo morrer. Mesmo que isso significasse jamais poder estar com Lux, evitar me tornar um Excluído era minha prioridade. Se isso acontecesse, eu estaria condenado, e Lux também.

— Tá! — cedi, ainda incerto — Vamos lutar juntos!

Analisei o perímetro e percebi que mais uma vez a Prioresa sumiu, nem com o portal contido ela ficou para entender a situação. Eu sempre odiei aquela bruxa velha, agora eu a odiava mais ainda.

— O plano é o seguinte: eu vou entrar no portal para limpá-lo antes que seja quebrado, e você me purifica a distância com Cerulean — sugeriu Ignis.

— Não vai dar tempo, o portal já está quebrando — apontei para as rachaduras no portal vermelho raivoso.

O som do chocalho anunciou a chegada da cascavel. Eu já me sentia fraco por conter o portal sozinho, acabei caindo de joelhos quando o monstro quebrou o meu escudo. Foi mais rápido do que antes, em um instante eu estava arfando no chão e no outro a serpente tinha voado em minha direção. Tudo ficou preto.

— Venha e seja o nosso Salvador.

Ouvi novamente ao recuperar a consciência em meio ao caleidoscópio. Já estava ficando cansado daquele Reino Espiritual. 

— Como eu, um mero leitor, vou salvar Pristine?! — gritei irritado, mesmo sabendo que nenhum som sairia.

— Fique mais forte, salve Pristine, seja o nosso Salvador. — rogou a voz.

— Me mande de volta novamente! — ordenei mentalmente.

Voltei à Catedral minutos antes de toda a desgraça. Era a minha terceira vez naquela cena e ainda me tirava o fôlego. A beleza da catedral era estonteante, assim como a de Ignis. Eu fui dragado para Pristine para salvá-la, precisava proteger a Mansão Sagrada e as pessoas dentro dela.

O que eu poderia fazer diferente dessa vez? Eu já tinha tentado ajudar Ignis a derrotar a cascavel e acabei morto. Depois tentei selar o portal e isso também acabou me matando. Nesses dois cenários, a única coisa que não se encaixava era a reação da Prioresa. Ela deveria selar o portal, e não eu…

“É isso, preciso fazer com que a bruxa velha lute!”

Encarei a Prioresa por toda a cerimônia. Eu invejava a roupa elegante dela, pois eu preferia estar com roupas formais àquela túnica ridícula, e foi o que deixei transparecer. Encarei a roupa como se lamentasse passar por um momento tão importante usando algo tão feio, enquanto na realidade eu estava observando cada movimento da bruxa velha.

Quando fui abençoado pela luz dela, não fechei os olhos como nas vezes anteriores. Era difícil de enxergar com toda aquela luminosidade, mas vi algo brilhar na outra mão da Prioresa. Não a luz da sua benção, mas algo sombrio. O calafrio tomou meu corpo e eu avancei para impedir a Prioresa de escapar. Segurei o pulso esquerdo dela com força e a mão em punho se abriu, resvalando cristais verdes-escuros. Eram Gemma Viridis, cristais corrompidos do tipo que se encontrava dentro de bestas de alto nível.

“O que a Prioresa estava fazendo com isso na Mansão Sagrada?”

Não tive muito tempo para pensar sobre a resposta. O portal se abriu e Ignis correu para dentro dele, sendo decapitado como na novel. Fui atraído pelo uivo incrustado com a dor de Mox. O corpo de Ignis derramava sangue e se debatia, enquanto sua cabeça já tinha sido completamente engolida pela serpente.

O meu corpo se mexeu sozinho, e quando dei por mim, eu já estava ao lado do cadáver, encarando os olhos amarelos e as presas cheias de veneno. Meu peito doía tanto que achei que não conseguiria respirar. Eu já tinha passado pela dor do luto de perder Ignis, um total de sete vezes! Aquele sentimento que me corroía por dentro não era meu, era de Spes. O sofrimento do dono do corpo me dominou e não fui capaz de raciocinar.

Gritei e minha voz saiu como um rosnado feroz de um lobo. Mox pulou em minha direção e senti meu olho direito esquentar. Pude sentir o poder flamejar dentro de mim e então explodir em minhas mãos. As labaredas de fogo envolveram o meu corpo e eu avancei contra a cobra.

Eu parecia presenciar uma experiência extracorpórea. Conseguia ver e sentir Spes desferindo murros no couro metálico, causando explosões em cada ataque. Logo as chamas vermelhas se tornaram azuis e derreteram a armadura da cobra.

As chamas aumentaram, assim como a fúria de Spes, tomando o corpo gigantesco da víbora e queimando-a por inteiro. O sibilo de dor, o cheiro de carne queimada e a fumaça tomaram a catedral. A besta estava morta.

Permaneci de pé, em alerta. Eu estava de volta ao corpo de Spes e meu olho direito ardia como se estivesse queimando também. Cobri o olho com a palma da mão e ouvi a Prioresa gritar:

— Ele se tornou um Excluído fora de controle, matem-no.

“O que?! ‘Matem-no’ e não ‘prendam-no’?”

Na novel, ao absorver o poder de Ignis, Spes tornou-se um Excluído e foi preso,  sendo utilizado como cobaia para diversos estudos. Ele era visto como algo menos do que um animal, um objeto para o culto da Luz brincar de Deusa. Os poderes de Guia de Spes eram usados deliberadamente, e qualquer Sentinela podia ser purificado por ele, sem se importar com os efeitos colaterais. Os poderes de Sentinela eram extraídos para fazer armas e testes bizarros. Por que aquela velha bruxa perderia tal oportunidade?

“Os cristais!”

Os Sentinelas avançaram em minha direção. Depois de toda aquela luta, eu estava fraco demais para me mexer. Meu desgaste físico e mental não me permitiu reagir. Os raios estroboscópicos vieram em minha direção, e fui atingido por vários tipos de poderes diferentes ao mesmo tempo.

Tudo ficou escuro novamente.

Nota da Autora:

O que será que a Prioresa está tramando?

Salvador com essa energia 👇🏻

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Agora me diz, qual personagem de uma obra que você gosta muito você ressuscitaria?